É Tudo Emanuel Mendes

Como o Diretor de É Quase Verdade Enfrentou o Pavor nos Bastidores

 

Por Marcela Liz

Entrevistas | 04 de Maio de 2014

 

Diretor, produtor e roteirista, Emanuel Mendes nasceu em Minas Gerais e vive em São Paulo desde 1999. Depois de se formar em Comunicação Social, em Ribeirão Preto, estuda cinema no Hollywood Film Institute, em Los Angeles, retornando ao Brasil após dois meses de uma experiência que considera definidora. Trabalhou como assistente de produção em comerciais de TV, curtas, médias e longas-metragens, além de passagens pela Casablanca Finish e pela Twentieth Century Fox. Estreou como realizador em 2002 com o curta Assis & Aletéia, uma história de amor surrealista inspirada pelo cinema de Luis Buñuel e Salvador Dalí. Em 2008, lança seu segundo trabalho na direção, Amarar, um conto fantástico sobre uma jovem apaixonada incapaz de distinguir passado, realidade e imaginação. Lançou pela Sincronia Filmes, produtora que fundou com o amigo Francisco Costabile em 2011, seu terceiro trabalho na direção, É Quase Verdade, uma comédia em média-metragem sobre o mendigo Aparício e seus amigos de rua ironizando o modus operandi do cinema brasileiro e sua eterna fixação em falar em sua grande maioria sobre os clichês do país e suas mazelas e pobrezas.  Confira os principais trechos da entrevista a seguir.

 

Você afirmou que É Quase Verdade representou um sem-número de primeiras vezes para você – foi seu primeiro filme em preto e branco, o primeiro rodado em digital, a primeira comédia, o primeiro feito quase todo na improvisação, entre outros. Dentre todos esses desafios, o que foi especificamente mais difícil?

Fazer as coisas na improvisação, sem dúvida nenhuma. Eu nunca tinha trabalhado assim – sempre fiz meus trabalhos baseado numa preparação quase neurótica, em ter um controle absoluto, pensando em todos os detalhes, desenhando todos os planos, essas coisas. Mas como eu tinha proposto para mim mesmo fazer um documentário – mesmo que fosse um documentário falso, e que, dessa forma, necessitava de uma preparação –, resolvi que iria fazer no improviso, preparando apenas o mínimo possível, me permitindo ter a maior liberdade para realizar tudo, de uma maneira muito leve, sem stress. Não fizemos storyboards, não planejei as coisas com tanta antecedência e preciosismo de detalhe – pensei comigo: Será que vou conseguir? Foi assustador, mas ao mesmo tempo super libertador e uma puta experiência bacana.

 

Onde esse desafio se revelou mais libertador, em qual processo do trabalho?

Na filmagem, principalmente. Nós fizemos um ensaio com os atores, apenas para delimitar os papéis, quem seria quem, quem diria o quê, quais as marcações de cena, achar o tom das interpretações, que era muito importante. Foi um processo muito do tipo ir fazendo enquanto ele acontece. Olhar para o que o ator te oferece e dizer: Ei, isso faz sentido! Olha, isso é muito bom! Uau, isso é sensacional! Aí então você tempera um pouco mais as coisas, joga um pouco de molho aqui, um outro tanto ali, vai sentindo os sabores do seu filme. Para alguns planos eu imaginava um posicionamento de câmera muito específico que no ensaio acabamos por realmente incorporar, mas em outros casos descartar. E quando fomos para o set mesmo, dei liberdade para todos os atores improvisarem, para que o Mario (Cassettari, diretor de fotografia) improvisasse, discutisse comigo, discordasse de mim – essas coisas foram super importantes.

 

Para você, que afirmou gostar de realizar os filmes com um controle absoluto, houve algum momento da criação de É Quase Verdade onde sentiu que algo estava fora do controle?

Lá nos subúrbios da memória não consigo me lembrar de algum instante onde isso tenha ocorrido. Talvez quando estávamos escrevendo o roteiro – quando tivemos uma de nossas fatídicas primeiras versões, que sempre achamos que são boas, mas que nesse caso aqui não era de jeito nenhum. Uma possível combinação de elementos foi suficiente pra perceber isso: um personagem principal que não tinha nada a ver, uma história que não comunicava absolutamente nada, nenhum senso de humor. O que escrevemos dessas primeiras versões foi o necessário para dizer, Ei, isso não está funcionando. E aí você recomeça praticamente do zero, e aí talvez perceba que, sim, algo não estava sob controle, que no nosso caso era a história propriamente dita. Depois desse processo, as coisas começam a andar do jeito que elas andam nos filmes; do modo como eram para ser. Encontramos as locações, estabelecemos como iríamos filmar alguns planos, que precisavam ser muito específicos. Achar os atores certos para os papeis certamente trouxe um outro sabor para a mistura. Mas no geral, o filme se fez sozinho, como as vezes acontece.

 

E por que a decisão de se fazer uma comédia, um documentário falso?

Quando você termina alguma coisa, e isso acontece comigo muitas vezes, você quer ir para o caminho contrário – seja porque está entediado de seguir sempre numa mesma linha ou simplesmente porque quer fazer outra coisa mesmo. No caso aqui foram pequenas partes que foram se juntando para se formar o todo – e elas vinham vindo há tempos, só que às vezes você não percebia ou não queria perceber, porque elas eram incômodas, tanto para nós quanto para os outros que as iriam receber. Mas as partículas estavam no ar te dizendo que era para ir por esse caminho, era para se realizar uma comédia, era para se fazer um documentário falso sobre uma situação que, a rigor, vinha me incomodando há um tempinho.

 

 

Vocês escreveram o roteiro com alguém em mente?

Escrevemos o roteiro com o Pedro (Ivo, que interpreta o protagonista) na cabeça, mas os outros apareceram ou porque eram contatos do Pedro ou porque já havíamos trabalhado com alguns deles, que nos levaram aos outros. Era preciso que eles evocassem o que seria o arquétipo dos personagens e não o clichê, justamente porque uma das coisas que estávamos ironizando era o clichê. E por mais que tivéssemos um roteiro, no qual você inevitavelmente acaba colocando um pouco de você, por mais que algumas coisas estivessem pré-estabelecidas, por mais que tivéssemos feito um ensaio, fico feliz de ver que o resultado foi algo que eles criaram – eles compreenderam totalmente o espírito da coisa e os personagens. 

   

O filme possui momentos de humor sarcástico, iconoclástico, muitas vezes demolindo e ironizando esses clichês e paradigmas do cinema brasileiro que você mencionou. Mas ao mesmo tempo ele é sério, os personagens dizem coisas que são tragicômicas, ou mesmo bastante dramáticas a respeito do Brasil, de política, de descaso e abandono. Foi uma decisão consciente ter essa mistura de ânimos durante o filme?

Rá, é claro. Quer dizer, eu acho. Provavelmente não tão consciente assim – até porque, como eu disse, quase tudo foi feito no improviso e muitas coisas descobrimos no ensaio, no dia a dia da filmagem, que resolvemos incorporar. Estávamos sempre buscando o riso solto, a diversão, tentar não ser tão sério e sisudo assim. Acho que a ironia é um modo de você contornar um pouco as coisas nesse sentido, de não ser tão clássico ou impositivo demais. Muitas falas foram escritas, muitas delas baseadas no que o André (Campos Mesquita, corroteirista do filme) e eu pensamos a respeito de determinadas coisas. Mas em outros casos nós apenas jogávamos uma semente para um ator e ele vinha com uma árvore extremamente frondosa – todos os atores foram sensacionais no quesito improvisação. O Paulo Lustig, por exemplo, foi um que joguei a semente do que queríamos que o personagem dele dissesse e fizesse e ele nos entregou a mais espetacular plantação que tivemos a sorte de captar em imagens. De novo, devo muito aos atores por tudo isso.

 

É Quase Verdade também toca, ainda que de maneira leve, no que se vem discutindo no Brasil já há alguns anos – o fato de a cultura do país estar condicionada a editais, patrocínios e concursos, que muitas vezes ficam nas mãos de uma burocracia incapaz de resolver alguns de seus principais entraves. Você acha que o filme pode ajudar a levantar essa discussão?  

Hummm… Nessas horas acho que sou obrigado a concordar com o que o Guilherme (de Almeida Prado, um dos atores do filme) diz – isso não é uma responsabilidade do cinema, é uma responsabilidade do país, dos encarregados de se fazer as leis, de uma vontade política maior. Se os políticos não ligam para o que é mais básico e importante, como educação e saúde, o que dirá da cultura?

 

 

Falando em Guilherme de Almeida Prado, você poderia dizer como o conheceu e qual o significado dos filmes dele para você?

Não é sempre que conseguimos conhecer nossos ídolos e, melhor ainda, ficar amigo deles. As duas coisas aconteceram comigo e só tenho a agradecer pelos filmes dele – que foram alguns filmes da minha formação –, e pela possibilidade de troca de ideias, de experiências, essa cumplicidade que é uma das melhores coisas que a boa amizade sempre traz.

 

Além do Zelig, de Woody Allen, no qual vocês discutiram antes de escrever o roteiro, houve mais alguma outra influência do cinema, alguma coisa da literatura, da televisão, que eventualmente entrou no processo?

Ah, sim. Houve várias. Algumas conscientes, outras incoscientes, outras que apareceram na filmagem, seja por sorte ou por ocasião do momento mesmo. Me lembro que na época em que escrevíamos o roteiro procurei assistir a muitas comédias – eu nunca tinha trabalhado nesse gênero antes (mesmo que tivesse uma vontade enorme de trabalhar), e só realmente botando a mão na massa você percebe o quanto é difícil. Uma coisa é você ouvir os outros dizerem o quanto comédia é difícil, outra coisa é você sentir isso na pele! (risos) Felizmente nós tivemos um time que, além do improviso, tem muita experiência com humor, com o timing muito bom e controlado para a coisa. E, é claro, você busca referências em coisas de que gosta – por exemplo, eu busquei coisas do Billy Wilder, um tantinho dos Trapalhões, um pouco mais do Tonacci (Andrea Tonaccidiretor do cinema marginal brasileiro), como o Bang Bang, que acho que é um filme que de certa forma tem a ver com o nosso, um outro tanto do cinema italiano, e bastante do Robert Downey Sr., pai do Robert Downey Jr., especialmente um filme dele chamado Putney Swope. Acho que a sequência do tango tem muito a ver com Jacques Tati, que era alguém que estava na minha cabeça na época. E também quadrinhos do Asterix, Laerte, uma mistura boa assim. Engraçado também como as coisas no geral tomam um rumo que você muitas vezes nem imagina: achei incrível o figurino da Simone (Leite, que interpreta a personagem Talidomida), porque a princípio a personagem dela seria uma releitura da personagem do Apocalipse 1,11 (peça de Fernando Bonassi encenada pelo Teatro da Vertigem), mas do jeito que ela fez e do modo como ficou vestida, e como filmamos a cena dela na cadeira de rodas com o Lucio (Marques, que interpreta Cabeça de Fósforo), pensei comigo: Putz, ficou muito mais próximo da Gelsomina! (personagem de Federico Fellini no filme A Estrada). Eis aqui um exemplo de uma influência inconsciente, que surgiu lá na hora. São coisas assim que te dão prazer e parecem te dizer: siga em frente que é por aí mesmo, rapaz.

 

Esse tipo de abordagem mais livre, onde se permite que o acaso interfira nas ações, parece ter orientado como vocês rodaram o filme. Você acha que isso acontece apenas com o documentário ou com o filme de ficção também, já que este último é sempre mais preparado?

Parece que, quando se faz um filme, ou pelo menos a experiência que tenho tido até agora, a providência divina toma de assalto o controle da situação e parece te dizer: Ah, então tá. Então vocês já vão rodar o filme? Ok, vamos enviar alguns sinais e ideias para vocês incorporarem no trabalho. Usem se quiserem, descartem se não estiverem interessados, mas eles estarão lá. Ao meu ver, isso não é um privilégio do documentário, isso acontece em todos os momentos das nossas vidas, não é mesmo?

 

 

O filme é um média-metragem, e está com cerca de 27 minutos. Vocês também chegaram a fazer uma versão de 50 minutos. O quanto o filme mudou na sala de edição e como foi a decisão de cortá-lo para o formato final?

Nada muito maciçamente grande ou diferente foi modificado na edição. Tínhamos muito material com o Pedro, especialmente dentro do táxi, durante a viagem ao aeroporto, que estava muito bom. Nessa versão de 50 minutos, utilizamos quase tudo que filmamos. É claro, montagem é, a grosso modo, tirar o que não serve e deixar apenas o que te ajuda a contar a história. E, por mais que todo o material estivesse bom, com falas, situações e improvisações muito engraçadas, nós fomos cortando para diferentes versões, elimando coisas apenas para ver qual o efeito isso iria causar. Se a conversa ali naquela cena levava a coisas do tipo zzzzz…., bem, aí você tem que cortar.

 

Depois de experimentar com tudo o que disse aqui – seja no gênero do filme, na improvisação dele, nas influências, entre outros –, como você se vê de agora em diante? O que gostaria de fazer e/ou explorar, ou que tipos de histórias gostaria de contar?

Ah, se me é permitido dizer uma coisa assim, eu adoraria poder filmar em película outra vez. Essa coisa da textura da imagem, o modo mecânico como tudo funciona – diferente do eletrônico –, é muito ultrasensacional. E não só o modo como é filmado, mas como é projetado também. Sei que os tempos são outros, e que isso pode soar como preciosismo ou uma fantasia muito molhada ou romântica, mas é uma bela fantasia para se ter na cabeça.

 

                                                                                                           _____

 

                              Marcela Liz é jornalista e empreendedora. Colabora regularmente para este site.