Cinema & Quadrinhos: Uma Dupla Dinâmica

Meios São Praticamente Feitos Um Para o Outro

 

Da Redação

Artigos | 07 de Maio de 2014

 

Se a primeira adaptação oficial – e bem-sucedida – de uma história em quadrinhos para o cinema, Superman – O Filme (1978), ainda não tinha se dado conta das enormes possibilidades que os dois meios possuem de conversarem entre si, é porque certamente Hollywood não levava tão a sério assim essa conversa. Afinal, demorou mais de uma década para que outra adaptação surgisse nos cinemas, e o resultado fosse tão bom financeiramente quanto o anterior, Batman (1989), esta sim a alavanca que se precisava para dar início à indústria das franquias hoje dominante no cinema americano. E ainda que, segundo alguns, sua consequência possa não ter sido assim tão boa artisticamente para o cinema, duas coisas são inegáveis: alguns personagens tiveram versões consideradas definitivas – caso de o Homem-Aranha, cujo segundo capítulo, lançado em 2002, resultou em um dos mais empolgantes filmes sobre um personagem de HQ –, e, principalmente, os fãs do meio não tiveram mais do que reclamar. No fim, são eles mesmos quem ganham uma vez que, a cada ano, centenas de novas produções com seus heróis favoritos desembarcam e tomam de assalto os cinemas. Mas cinema e quadrinhos são assim tão parecidos? As duas artes, no fim das contas, têm realmente, para usar um termo apropriado, a mesma identidade?

 

 

Não há dúvida de que o cinema – e principalmente o cinema americano, tão calcado assim na ideia de divertissement – vem utilizando cada vez mais uma linguagem que seria próxima àquela dos quadrinhos. Basta lembrar que um dos primeiros filmes de ação da história, o clássico mudo O Grande Assalto ao Trem (1903), já trazia elementos calcados nos quadrinhos: ação incessante; cortes rápidos; narrativa centrada no storytelling. Com apenas 12 minutos, este que foi um dos primeiros faroestes sugeriu à plateia da época que os filmes poderiam, e deveriam contar, uma história. Essencialmente, esta seria a principal característica das HQs: é através da história, do mito contido nela, do herói em busca de vingança, oprimido pelas injustiças de seu meio, o que torna, ou não, um produto como o quadrinho bem-sucedido para seus leitores e fãs. Para eles, se não houver essa identificação, tudo estará perdido.

 

 

Mas talvez o mais interessante de toda essa discussão seja o fato de que até o cinema de arte – aquele adulto, maduro, destinado a plateias cultas – tenha também incorporado traços, às vezes até literais, dos quadrinhos: basta lembrar Federico Fellini e seus rostos grotescos de filmes como 8 ½, Satyricon, Roma e muitos outros. Isso, sem contar que Fellini, à parte um mestre da plasticidade nas telas, ter sido, indubitavelmente, ele também um quadrinista e caricaturista, tendo até iniciado a carreira por esse viés. Essa incorporação de tipos e traços das HQs pode ser notada até nos figurinos usados por seus personagens – muito mais semelhantes a caricaturas do que a personagens reais. E o que dizer de um filme como Macunaíma (1969), o clássico do Cinema Novo e uma das maiores pérolas produzidas pelo cinema do país, cujo andamento progressivo, personagens, figurinos e direção de arte não são nada menos do que transcrições de uma HQ para o cinema? Do outro lado do mundo, Kurosawa utilizou o desenho – linhas e cores absolutamente deslumbrantes – não apenas para fazer os storyboards de suas produções, mas também para dar à sua equipe uma ideia precisa, cheia de detalhes, dos rostos, das vestes, das ações dos personagens. Se um filme como Ran, lançado pelo diretor em 1985 e inspirado em Rei Lear, de Shakespeare, não contiver os princípios básicos de uma HQ, então, não sabemos mais o que contém.

 

 

Hoje, o cinema de Hollywood não apenas dominou e aperfeiçoou essa técnica dos quadrinhos – levando às telas adaptações literais de algumas obras, como Sin City (2005), que chegou ao cúmulo de usar o mesmo traço e iluminação de sua fonte, no caso o desenhista Frank Miller (também codiretor do filme ao lado de Robert Rodriguez), indo vários passos além do precursor de tudo, Dick Tracy (1990), e 300 (2006), cuja estilística e sofisticação o colocam próximo do operístico –, como também percebeu e criou um outro tipo de cinema, cujo resultado muitas vezes pende para o videogame e congêneres – cortes rápidos e bruscos e linguagem publicitária. Isso tudo, aliado ao digital hoje dominante no mercado, que produz imagens cada vez mais cristalinas, sem defeitos, realísticas ao extremo, está formando um outro tipo de espectador. Um espectador que se encontra do lado de uma outra tela – a mesma do computador.

 

E se isso está transformando o modo como os filmes são feitos (pelo menos alguns deles), também está transformando uma boa parcela de seus consumidores – e consequentemente tudo o que eles consomem. Os mesmos consumidores que, mais de cem anos atrás, se empolgaram e se emocionaram com um primeiro assalto de trem.